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31.5.18

No tempo em que os animais falavam

Tive um desafio incrível: fazer uma curadoria de livros na órbita dos espetáculos do novíssimo (e velhinho Teatro Luís de Camões, mais conhecido como Belém Clube, ali na Calçada da Ajuda) Lu.Ca!
Este teatro municipal será um novo Lugar na cidade para as Crianças para os Jovens e para as Artes. Maravilha, não?

Irei escolher livros que ajudem a mostrar cada espetáculo de diferentes perspetivas. Livros que serão lidos por olhos a várias alturas: apontando pontes para outros lugares, abrindo espaço para descobertas, ampliando as leituras do espetáculo. Livros escolhidos a dedo: aqueles que fazem tocar campainhas, aqueles a que voltamos sempre, aqueles que nos põem a pensar.

O espetáculo de abertura, que é um dos acontecimentos destes Dias de inauguração, já neste primeiro fim-de-semana de junho, parte das Fábulas — de Esopo, de La Fontaine.
Peguei então nas fábulas e andei a ver de que eram feitas.
Fábula vem do latim (fabulare) como tantas outras palavras que estão na origem da nossa língua. Aprendi que Fabulare dá mesmo origem ao verbo falar.

Diz-se que uma história para ser uma fábula deve ter animais com características humanas como protagonistas e uma moral no fim. Depois há exceções a esta regra — ou não fosse uma regra — e é permitido que os protagonistas não sejam sempre animais. Mas a lição está sempre lá. La Fontaine (que resgatou as fábulas do esquecimento) dizia que a fábula é como uma pintura na qual vemos o nosso retrato.

Há muito muito tempo, quando um escravo na Grécia escreveu as primeiras fábulas do Ocidente, (porque na verdade elas apareceram primeiro lá mais para o Oriente), nem toda a gente podia dizer o que queria. E, sim, ainda há lugares assim.
A partir do momento em que foi possível pôr um animal a falar e a fazer outras coisas humanas, também foi possível dizer coisas proibidas. Porque não é o homem que as diz, é o bicho. E como bichos não falam, então nada do que dizem pode ser verdade ou proibido. Será?

Enquanto que nas fábulas antigas acontece sempre qualquer coisa de mau a um dos protagonistas como consequência das suas opções ou ações, na maior parte das fábulas contemporâneas acontece qualquer coisa de bom.

Outra diferença de que me apercebi é que as fábulas antigas são muito sintéticas enquanto as contemporâneas desenvolvem mais a narrativa. Talvez por isso possam ser mais positivas, pois permitem que haja tempo para que a personagem se redima e a história acabe bem.

Nas fábulas o timing é tudo: o sítio certo à hora certa, o momento perfeito, o sentido de oportunidade estão presentes em todas estas histórias.

É fácil encontrar um provérbio (também uma lição) que sirva de legenda a cada uma das fábulas. Foi o que fiz nesta primeira curadoria: escolhi 9 fábulas de hoje que viessem falar com as 9 de ontem que fazem este espetáculo — e 9 provérbios, claro!

Um dos livros que fez parte da pré-seleção deste campeonato (e que depois ficou de fora) foi o Histórias Assim, uma espécie de Livro de Fábulas de Rudyard Kipling — sim, o do Livro da Selva!

Temos também uma versão de capa mole com menos uma história (Relógio de Água, 1994), mas a tradução parece-me mais difícil. (Essa edição tem as ilustrações a preto e branco originais que o autor fez no original em 1902 e que é uma pena que não apareçam nesta...).
São histórias sobre o princípio do mundo — e a explicação de porque alguns animais são como são — que Kipling contava aos seu filhos.

A que explica porque é que o camelo tem uma bossa é deliciosa, duma modernidade incrível; podia ter sido escrita pelo Almada!

O tempo em que os animais falavam é o tempo da infância, o tempo de todas as possibilidades, o tempo em que até os animais podem falar e dizer coisas importantes.
Para saberem quais são as 9 fábulas que fazem o espetáculo de abertura — e quais foram os livros que escolhi para entrarem na dança com elas — apareçam no Lu.Ca; acreditem que vale a pena a visita, senão este fim-de-semana, num qualquer outro passeio pela cidade, ali para os lados de Belém.
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Histórias assim
Bertrand Editora/Círculo de Leitores, 2016 (texto original de 1902)
Rudyard Kipling texto, Sébastien Pelon ilustrações
isbn 9789722532600

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